Blue Eye Samurai é uma sangrenta jornada para o Japão feudal e uma das melhores produções da Netflix. Sustentado por conflitos e dilemas morais profundos, o anime entrega ação intensa, um belíssimo visual, críticas sociais e, claro, uma ótima história sobre vingança.
De autoria de Michael Green e Amber Noizumi, a animação cativa tanto pela sua trama envolvente quanto pelos temas que aborda. Contudo, o que a torna verdadeiramente única é sua exploração da colisão de valores em uma sociedade marcada por tradições rígidas e discriminação.
Neste artigo, vamos analisar como Samurai de Olhos Azuis utiliza seus personagens e enredo para questionar as normas sociais, desafiando as convenções e revelando as tensões latentes de uma era historicamente marcada pelo isolacionismo e conservadorismo. (contém spoilers)
Preparem suas katanas!
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Um Reflexo da Sociedade Feudal
"Em 1633 o Japão fechou suas fronteiras para o mundo exterior. Completamente. Os cidadãos jamais veriam um rosto branco, nem qualquer outro rosto que não fosse japonês.
Uma criança nascida da mistura de raças seria considerada menos que humana. Desprezível. Impura. Monstruosa."
Esses são os créditos iniciais, acompanhados por uma trilha sonora melancolica e terna, enquanto a câmera nos mostra um guerreiro caminhando em meio a neve em direção a uma aldeia.
Essa introdução guarda os conceitos e motivações do protagonista e da trama. No coração da história, acompanhamos Mizu, que lida com as complexidades de ser uma pessoa de origem mestiça em um Japão que valoriza a pureza de sangue e as tradições.
A trama explora profundamente os temas de identidade, vingança e honra, mas também apresenta um personagem que vai muito além do clássico guerreiro sedento por justiça.
A narrativa, que parece simples à primeira vista, evolui com camadas emocionais e conflitos internos que mantêm o espectador engajado.
Mizu e o Autodesprezo
Mizu é uma protagonista marcada pelo ódio, desprezo e violência. Desde cedo, sua vida era uma constante luta pela sobrevivência. A razão de tanto sofrimento? Seus olhos azuis. Algo visto hoje como belo, nesse contexto é uma aberração.
A obra não se limita a tratar do tema apenas pela ótica do agressor. A vítima (Mizu) também odeia e despreza a si mesma. De início não compreendi a razão por trás desse ódio, mas a narrativa nos permite saber.
Acontece que Mizu se vê como um legítimo japonês e suas crenças são a daquele povo, e a mistura de seu sangue, para ele, é um inferno. É desse rancor e mágoa que nasce seu desejo de vingança. Matar aqueles que o deram vida.
Em meio a flashbacks e conversas, descobrimos que a mãe de Mizu foi violentada por quatro homens brancos, o que acrescenta ainda mais peso e motivação para a jornado do protagonista.
Para piorar a situação ainda mais, Mizu é (spoiler), na verdade, uma mulher, como ficamos sabendo no final dramático e cômico do primeiro episódio com o ingênuo Ringo a encontrando nua e vulnerável.
"Pêssegos."
Essa não é uma mera decisão artistíca ou ideológica, antes, serve para explorar as mazelas e injustiças de uma sociedade totalmente patriarcal. Mizu representa a resistência à essa sociedade, enquanto Akemi é a tradicional aceitação, com um sopro de rebeldia.
Complexidade dos Personagens
Samurai de Olhos Azuis, como toda boa obra, se destaca não só por sua trama polida e ação embasbacante, mas também pelos seus personagens complexos, cada qual dono de motivações e personalidades distintas.
Essa galeria de personagens representam diferentes aspectos do Japão feudal, como o preconceito racial, a luta pela sobrevivência e a busca por justiça.
Gosta de personagens complexos, e se tiver poderes apelões e visual maneiro? Então, bora conhecer Tokyo Ghoul!
Samurai de Olhos Azuis
Mizu, a protagonista da série, é o coração da história. Sua origem mestiça e aparência incomum, com olhos azuis, fazem dela uma pária em uma sociedade rígida e intolerante.
Ao longo da história, descobrimos mais sobre seu passado e podemos nos conectar com suas emoções, severamente reprimidas. É doloroso e triste o arco em que Mizu aceita sua feminilidade e, até, permite-se amar.
Seu romance com Mikio é construído de forma sutil, com as personagens distantes inicialmente, mas forçadas a conviver, por conivência. Ela, busca uma vida comum e um teto, ele, destituído de seu cargo, não lhe resta opções de noivado.
Essa construção oferece ainda mais drama e pesar para o terço final do arco, em que Mizu, sentindo-se acolhida e aceita pela primeira vez na vida, revela seu verdadeiro eu para o marido, apenas para ser destratada e magoada, rememorando seus dias de desprezo e odio.
Esse arco é um ponto central para a personalidade de Mizu. Ao matar o marido e "mãe", surge o onryo, e o destino de Mizu é selado para sempre. Nasce uma vontade inquebrantável em seguir em frente, nem que para isso tenha o corpo o corpo lacerado, ossos quebrados e sua fé em si mesma provada.
A força de Mizu é tanto física quanto mental. Uma mescla refinada entre suas habilidades como espadachim e sua resiliência inumana diante das adversidades impostas pela sociedade.
Taigen Kusunoki
Taigen é o representante das tradições rígidas do Japão feudal e um dos principais antagonistas de Mizu. Ele simboliza o poder e os preconceitos estabelecidos que perpetuam a exclusão e a discriminação.
No passado, Taigen foi um dos muitos agressores de Mizu, ainda crianças. Agora, adulto, ele é um respeitado espadachim, dono de uma reputação invejável, e futuro noivo da filha de um influente lorde.
A desgraça de Taigen se dá quando Mizu cruza seu caminho. Presunçoso e arrogante, Kusunoki é o melhor aluno do dojo e põe-se no caminho de Mizu e sua vingança, apenas para ser humilhado e derrotado.
Essa derrota age no psicológico de Taigen, que não aceita a derrota e parte em busca de uma revanche que, acredita ele, irá lavar sua honra e restaurar as coisas a sua normalidade.
O confronto entre Mizu e Taigen vai além das batalhas físicas, levantando questões sobre honra, justiça e o verdadeiro significado do poder.
Taigen é um antogonista cujas motivações não se limitam ao mal puro, mas refletem a manutenção de um sistema que ele acredita ser inquebrável.
Akemi
Akemi é uma princesa que sonha em se casar com Taigen Kusunoki. Sua posição como uma figura da nobreza oferece uma perspectiva interessante sobre os temas de poder e tradição dentro da narrativa.
Sua personagem, ao lado de Mizu, enfrentam as maiores jornadas da série. Akemi é movida por seu coração, e ele a leva a desobedecer seu pai e fugir em busca de seu amado.
Contudo, sua jornada a leva a leva a enfrentar seu papel como mulher, e a lidar com as responsabilidades e deveres que se é esperado dela. Indo de filha mimada para amante desiludida, passando por falsa acompanhante até enfim a noiva do filho do Shogun, seu arco narrativo é poderoso e tocante.
Seu arco reflete os dilemas enfrentados por mulheres em um sistema onde seus desejos pessoais são nulos, e toda sua vida é sacrificada em nome da política e das alianças familiares.
Apesar da tragédia anunciada, Akemi encontra força e um novo propósito, descobrindo uma forma de tomar as rédeas de seu destino, enquanto explora as zonas cinzas de um relacionamento político.
Abijah Fowler
Fowler é um estrangeiro misterioso e desprezível, um mercenário que traz uma nova dinâmica para a série. Como um forasteiro em terras japonesas, Fowler representa uma ameaça inesperada e imprevisível.
O momento em que ele oferece iogurte para seus convidados enojados é a personificação do choque cultural entre o Japão e o Ocidente.
As cenas com o vilão são dotadas de um cinismo e insensibilidade desconcertantes e perturbadores. Seu personagem é intrinsicamente mal e ganancioso.
As bizarrices com as quais se satisfaz revela muito sobre sua personalidade e valores. Quando do enfrentamento do Shogun e sua família, a execução do chefe da família é crua e banal, um momento muito esperado pelo vilão.
Mestre Eiji (O Ferreiro)
O típico velhinho sábio e gentil. O Ferreiro é uma figura fundamental na vida de Mizu. Ele a acolheu quando criança e lhe ensinou a arte da forjadura de espadas, dando-llhe um propósito de vida.
Seu papel vai além de apenas fabricar armas; ele é uma figura simbólica que conecta Mizu ao legado dos guerreiros do passado.
Como um mestre em sua arte, o Ferreiro traz à tona a importância da tradição, habilidade e paciência, representando o respeito pela arte da forja em um mundo cada vez mais consumido pela violência.
"O que é uma espada? uma espada é uma linha: em uma ponta está a vida, na outra, a morte."
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Visual Deslumbrante e Coreografia de Lutas
A Netflix não poupou esforços no visual de Blue Eye Samurai. A animação é rica em detalhes, com paisagens e cores no tom certo e cenas de ação coreografadas com perfeição.
Há lindas tomadas de paisagens em meio a neve, ou ao por do sol, ou a incrível batalha ao lado do mar, enquanto as ondas se quebram conforme os samurais duelam. Exemplos não falta.
Essas cenas oferecem um duro contraste entre as ações frias de Mizu, que abre seu caminho para a vingança em meio ao sangue e a dor.
Cenas de ação
É impossível não ficar admirado com as cenas de luta desse anime, tanto pela quantidade exagerada de sangue e mutilações quanto pela fluidez das cenas.
E tudo fica ainda melhor com a habilidade insana de Mizu em retalhar e desmembrar seus inimigos com sua espada, oferecendo um banho de sangue digno de Kill Bill.
O estupendo "Todos os Pesadelos e Xingamentos", episódio #6, é praticamente um grande tributo ao jogos, com a personagem invadindo um castelo enquanto precisa enfrentar perigosos desafios.
É também o episódio mais tenso e violento, para mim. Mizu finalmente parece prester a concretizar sua vingaça, porém, uma série de armadilhas e desafios mortais foram especialmente preparados para ela.
Será que ela os vence ou falha em sua missão? Todo o episódio é uma aula de direção de cenas de ação e movimento narrativo. Nada de spoilers. Deixarei vocês descobrirem assitindo ao show.
Em Samurai de Olhos Azuis, cada batalha é como uma dança sangrenat, com uma mistura de brutalidade e beleza que mesmeriza e repele. O uso de cores e sombras também reforça o clima tenso da trama.
Contexto Histórico de Blue Eye Samurai
O anime Blue Eye Samurai se passa no Japão feudal, uma era marcada por uma estrutura social extremamente rígida, a presença de senhores de guerra (daimyos), samurais e um código de honra (Bushido) profundamente enraizado.
Situada em um período próximo ao Sakoku (política de isolamento nacional), essa era foi governada pelo Shogunato Tokugawa, que, a partir do início do século XVII, implementou uma série de medidas para controlar o contato do Japão com o exterior e consolidar seu poder interno.
O Sakoku foi um período de isolamento quase total, onde o Japão restringiu severamente o comércio e as interações culturais com outras nações, exceto por alguns poucos portos comerciais em Nagasaki, na ilha de Deshima, abertos a holandeses e chineses.
Qualquer pessoa considerada "diferente" ou "estrangeira", como a protagonista Mizu com seus olhos azuis, enfrentava discriminação severa. Com esse pano de fundo histórico, o anime explora o preconceito racial e exclusão social, refletindo acuradamente as tensões da época.
Além disso, o Japão feudal era profundamente influenciado por normas sociais e hierarquias que limitavam as opções das mulheres e de classes mais baixas, o que é representado nas jornadas pessoais dos personagens, especialmente Mizu e Akemi.
Período Edo (1603-1868)
Uma curiosidade interessante é que Blue Eye Samurai e a série Xógum: A Gloriosa Saga do Japão, outra excelente obra sobre a terra do sol nascente, retratam o mesmo período histórico, o Período Edo, 1603-1868. Apesar de abordar diferentes aspectos e histórias dentro desse contexto.
Tanto Blue Eye Samurai quanto Xógum se passam no mesmo período da história do Japão, o que proporciona uma base histórica compartilhada. No entanto, cada série explora diferentes nuances do Japão feudal, sendo Xógum mais focada no choque entre culturas e Blue Eye Samurai mais centrada na luta pessoal e interna de uma personagem que sofre preconceito em um ambiente feudal rígido.
O Período Edo foi marcado pelo governo do Shogunato Tokugawa, uma ditadura militar que estabeleceu a capital no que é hoje Tóquio (antiga Edo). Esse período foi caracterizado por:
Isolamento Nacional (Sakoku)
O Grande Incêndio de 1657
O último episódio de Blue Eye Samurai retrata um evento histórico real: o Grande Incêndio de Meireki (1657), também conhecido como o Incêndio Furioso de Edo.
Esse foi um dos maiores e mais devastadores incêndios na história do Japão, destruindo grande parte da cidade de Edo (atual Tóquio) e resultando na morte de aproximadamente de 100.000 pessoas.
Causas do Incêndio
Historicamente, o incêndio começou no dia 2 de março de 1657, durante a era de Tokugawa Ietsuna, quando um vento forte, aliado a um tempo seco, espalhou as chamas por entre as casas de madeira e papel, características da arquitetura de Edo na época.
Existem diversas teorias sobre a causa do incêndio, sendo a mais popular a de que ele começou com um ritual de purificação do fogo realizado no Templo Hōmei-ji.
Consequências do Incêndio
Após três dias de destruição, quase 70% da cidade havia sido reduzida a cinzas, incluindo o castelo de Edo. Tal desastre forçou uma reestruturação urbana em Edo, e o Shogunato Tokugawa utilizou o evento para implementar reformas arquitetônicas e de planejamento urbano, visando a evitar futuras catástrofes.
Apesar da tragédia, o evento foi um marco que moldou a reconstrução da capital e consolidou o poder do shogunato.
Veracidade no Anime
No anime, o Grande Incêndio de 1657 é utilizado como um catalisador dramático para o clímax da história. Enquanto o evento é retratado de maneira bastante fiel ao ocorrido na história, com fortes cenas de destruição e caos, a narrativa conecta o evento histórico diretamente às jornadas pessoais dos personagens, usando a catástrofe para simbolizar tanto o caos externo quanto o conflito interno da protagonista.
O incêndio representa uma espécie de "renascimento" na vida de Mizu, assim como simbolizou uma nova era para a cidade de Edo após sua destruição. No entanto, algumas licenças poéticas foram tomadas para alinhar os eventos com o arco narrativo do anime.
Embora o incêndio tenha ocorrido, os confrontos e as situações abordadas dentro desse contexto específico são ficcionais, usados para intensificar a carga dramática e emocional da série.
Blue Eye Samurai e os Prêmios no Emmy 2024
No Emmy 2024, Blue Eye Samurai foi indicada e levou importantes prêmios, consolidando sua relevância no cenário das animações e refletindo o excelente trabalho da equipe criativa e técnica.
Entre as conquistas, destacam-se as categorias de Melhor Série de Animação e Melhor Direção em Animação. Seu sucesso no Emmy 2024 ressalta ainda mais o impacto cultural e artístico do show.
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Conclusão
Blue Eye Samurai é mais do que apenas um anime de ação ambientado no Japão feudal, ele explora a colisão de valores de uma sociedade rígida e intolerante, fazendo-nos refletir sobre a situação atual do mundo.
Com uma animação atraente e prática, constrói uma narrativa clássica de vingança, acrescentando temas como identidade, justiça, poder e preconceito. Tudo isso enquanto oferece um prato cheio para os amantes de duelos samurais.
Com a dose certa de ficção e realidade, ambientando sua narrativa em um dos períodos mais interessantes da história do Japão feudal, a série animada é uma grata surpresa no catálogo da Netflix.
Se você gosta de histórias de samurais com personagens profundos, lutas épicas e uma trama cheia de reviravoltas emocionantes, Blue Eye Samurai é o anime perfeito para você.
E aí, já assistiu Blue Eye Samurai? Acha que é tudo isso ou é apenas superestimado? Compartilhe sua opinião nos comentários!